Seara Alimentos é condenada em Pouso Alegre a pagar R$ 9,1 milhões por excesso de peso nas rodovias
MPF recorreu de parte da sentença, para obter também a condenação por danos morais coletivos.
Recurso pede ainda que seja expedida ordem judicial proibindo a ré de dar saída a veículos com sobrepeso
O Ministério Público Federal (MPF) obteve a condenação da empresa Seara Alimentos ao pagamento de indenização no valor de mais de R$ 9,1 milhões em razão do transporte de carga com excesso de peso por rodovias federais.
Na ação proposta em 2018, o MPF relatou que a Seara, em suas operações comerciais, utilizava habitualmente veículos com sobrepeso. Somente no ano de 2016, e em um único posto de pesagem veicular (PPV) instalado na BR-381, em São Sebastião da Bela Vista, sul de Minas Gerais, veículos com carga da Seara foram flagrados em ao menos 127 oportunidades trafegando com excesso de peso.
Nos dois anos anteriores ao do ajuizamento da ação, mais de 2.500 autos de infração haviam sido lavrados contra a Seara em todo o país pelo mesmo motivo. Em diversas ocasiões, o limite permitido de peso foi extrapolado em mais de 1.000 kg além do tolerado, e, em alguns casos, o excesso foi de mais de 5.000 kg.
“Tantas autuações demonstram que a empresa ré não tem a menor preocupação em se adequar às regras de trânsito, tampouco em manter conservadas as rodovias do país, sendo um hábito permitir que seus caminhões se locomovam com peso acima do estipulado pela legislação”, afirmou o MPF.
As 127 autuações em 2016 resultaram no pagamento de multas que totalizaram apenas R$ 23.760,38, “valor irrisório perto do faturamento e do lucro da emprega com a prática ilegal”, e, por isso, insuficiente para a inibir a ilicitude cometida pela ré. Segundo a ação, esse valor, de tão irrisório, passou “a fazer parte do custo normal do negócio, transformando a ilegalidade em prática rotineira e hábito empresarial”.
Danos e impunidade
A irregularidade – seja do excesso do Peso por Eixo, por Peso Bruto Total (PBT/Peso Bruto Total Combinado – PBTC) ou por Capacidade Máxima de Tração (CMT) – é, notoriamente, a principal causa da redução do tempo útil das estradas pavimentadas.
De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), o excesso de peso dos veículos aumenta substancialmente os custos de manutenção rodoviária. Em 2004, o Ministério dos Transportes estimou um prejuízo de 1,4 bilhão só de danos ao pavimento. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que até 2% do PIB de um país pode ser comprometido, por ano, em razão de danos causados pelo excesso de peso em rodovias.
Expressamente proibido pelo artigo 99 do Código de Trânsito Brasileiro, o transporte de carga com excesso de peso também aumenta potencialmente o número de acidentes, inclusive os com vítimas fatais, assim como a gravidade das lesões, pois o sobrepeso compromete o sistema de frenagem e aumenta exponencialmente a massa do veículo, atrapalhando a manobrabilidade, diminuindo sua estabilidade e levando, com frequência, ao tombamento.
Na ação, ao pedir que a ré fosse condenada por danos materiais e morais, o MPF argumentou que “as multas aplicadas pela ANTT [Agência Nacional de Transporte Terrestre] não têm sido suficientes para inibir a ação da empresa Seara Alimentos Ltda., que se utiliza do excesso de peso para obter vantagens competitivas no mercado”, através da maximização da produtividade e dos lucros.
Para o MPF, “a reiteração das condutas lesivas e o desinteresse da empresa em ajustar a sua prática comercial configura ato calculado, uma vez que o lucro advindo da prática ilícita é superior ao valor das multas aplicadas na esfera administrativa nas ocasiões em que a empresa foi flagrada pelos agentes de fiscalização”.
Sentença e recurso
Na sentença, o Juízo Federal afirmou ter ficado cabalmente comprovado “o nexo causal entre a conduta contumaz da requerida de transportar carga com peso acima do permitido e os danos à segurança do tráfego e ao asfalto das rodovias federais”, e deferiu a indenização pedida pelo MPF quanto aos danos materiais causados pela empresa ao patrimônio público federal.
No entanto, negou fixar indenização pelos danos morais coletivos, sob o argumento de que a conduta da empresa não teria causado “grave abalo à moralidade pública e/ou sofrimento à coletividade”. O Juízo Federal também se negou a expedir ordem judicial proibindo a Seara de dar saída a veículos com excesso de peso, ao entendimento de que não haveria necessidade ou mesmo utilidade em impor uma obrigação que já é proibida pelo Código de Trânsito Brasileiro.
O MPF recorreu dessa parte da sentença, demonstrando que ambos os entendimentos contrariam não só diversas leis federais e a própria Constituição, como recorrente e até unânime jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Ao julgar recursos interpostos exatamente sobre esse tema – transporte de carga com excesso de peso em desobediência aos limites impostos pela legislação federal -, o STJ assentou que embora tal conduta possa ser punida na via administrativa, isto não impede que o Judiciário seja acionado para obrigar a empresa a proceder conforme a lei, até em respeito ao princípio da independência das instâncias, o qual possibilita que uma mesma conduta seja punida concomitantemente nas esferas criminal, civil ou administrativa.
Os ministros do STJ, em diversos julgados, destacaram a “desproporcionalidade entre a sanção imposta e o benefício usufruído”, pois “a empresa tolera a multa” administrativa, na medida em que “a infração vale a pena”, estado de coisa que desrespeita o princípio que veda a “proteção deficiente”, também no âmbito da “consequência do dano moral”. Chamaram atenção também para o “investimento empresarial na antijuridicidade do ato, que, nesse caso, só pode ser reprimido por ação civil pública” e que os fatos passam a ideia de que “compensa descumprir a lei e pagar um pouquinho mais”.
O MPF afirma, no recurso, que, desde então, o tema passou a ser decidido de forma unânime pelo Superior Tribunal de Justiça, para admitir a imposição de obrigação de não fazer, sujeita a multa civil, às empresas demandadas por trafegar com excesso de peso. Nesse sentido: ‘(…) Não se desconhece o cabimento da ação civil pública para obter pronunciamento judicial voltado à imposição de obrigação de não fazer e pagamento de indenização por danos morais coletivos por empresa que persiste com a prática de fazer com que seus veículos circulem com excesso de peso, mesmo após considerável número de autuações administravas no Código Brasileiro de Trânsito’(AgInt no REsp 1.819.218/RN, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 9/3/2020).”
Dano moral coletivo
O recurso também demonstra que, no caso, os danos morais causados à coletividade são notórios, dispensando que se produza provas específicas.
“O tráfego com excesso de peso viola direitos dos cidadãos usuários das rodovias federais à vida, à integridade física e à saúde, à segurança pessoal e patrimonial, e ainda os também difusos e coletivos direitos à preservação do patrimônio público federal consubstanciado na rodovia federal e nos serviços de transporte, à ordem econômica e ao meio ambiente equilibrado (natural e artificial)”, lembra o MPF, e acrescenta que, também neste aspecto, a jurisprudência dos tribunais firmou-se no sentido de que o dano moral coletivo está configurado quando há violação intolerável de direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade – consumidor, ambiental, ordem urbanística, entre outros -, “dispensando-se a demonstração dos prejuízos concretos ou o efetivo abalo moral”.
De acordo com o próprio STJ, por ocasião do julgamento do REsp nº 1.410.698/MG em 2015, “o dano moral coletivo decorrente do excesso de peso é daqueles in re ipsa, ou seja, deriva do fato por si só”, e, em outro julgado (REsp n. 1.574.350/SC), também citado pelo MPF no recurso, o tribunal foi ainda mais explícito, ao reconhecer que, para a configuração do dano moral extrapatrimonial, não “importa exigir da coletividade ‘dor, repulsa, indignação tal qual fosse um indivíduo isolado, pois a avaliação que se faz é simplesmente objetiva, e, para tal não personalizada, tal qual no manuseio judicial da boa-fé objetiva’.”
No caso concreto, reitera o MPF, as milhares de autuações – mais de 2.500 autos de infração em apenas dois anos – revelam o total descaso da parte ré para com a legislação de trânsito e demonstram a importância da fixação do dano moral coletivo como forma de prevenir novas condutas antissociais, punir o comportamento ilícito, e reverter, em favor da comunidade, o eventual proveito patrimonial obtido pela ré ao infringir a lei.
O recurso será julgado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região.